Chico Buarque esquece o desalento e abençoa a 'boa brisa' do Brasil na estreia do show 'Que tal um samba?' no Rio de Janeiro

Com leveza, artista alfineta o ex-ministro Paulo Guedes ao reviver 'Bancarrota blues' na retomada da turnê nacional feita pelo cantor com Mônica Salmaso como convidada realmente especial.

Chico Buarque esquece o desalento e abençoa a 'boa brisa' do Brasil na estreia do show 'Que tal um samba?' no Rio de Janeiro

Resenha de show

Título: Que tal um samba?

Artista: Chico Buarque

Local: Vivo Rio (Rio de Janeiro, RJ)

Data: 5 de janeiro de 2023

Cotação: ★ ★ ★ ★ ★

♪ É sintomático que Chico Buarque tenha tirado a música Desalento (1970) do roteiro do show Que tal um samba? no decorrer da turnê que percorre o Brasil desde 6 de setembro. As mutações sofridas pelo roteiro a partir do fim de novembro – com a entrada de Mil perdões (1983) em sóbrio tributo a Gal Costa (1945 – 2022) – acompanharam as transformações do país.

O alívio do cantor com a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022 desanuviou o clima e alterou o sentido político do show, como ficou claro na chegada da turnê ao Rio de Janeiro (RJ), cidade natal do artista, na noite de ontem, 5 de janeiro, na primeira das 16 apresentações agendadas na casa Vivo Rio.

Ao longo de show embebido em beleza, Chico esqueceu o desalento e – com a voz posta no tempo do artista de 78 anos – soprou a boa brisa que embala o Brasil neste início de 2023. A leveza do cantor gerou até ironia com o ex-ministro da economia do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, durante Bancarrota blues (1985).

“Essa é do Paulo Guedes”, debochou após fazer piada com os boatos de que comprava música, em alusão ao fato de a juíza Mônica Ribeiro Teixeira ter questionado a autoria da música Roda viva (1967) em ação movida pelo compositor contra o deputado Eduardo Bolsonaro pelo uso indevido do tema.

“Não sou comprador de música”, brincou. “Mas posso vender”, completou o compositor, genial e mordaz, ao retomar o canto do blues de ritmo marcado com o estalar de dedos do artista e as palmas da plateia cúmplice nos ideais.

A afinidade musical e ideológica entre artista e público já ficou evidente quando, no set inicial de Mônica Salmaso, a cantora foi aplaudida a cada verso mais significativo do samba Bom tempo (1968), cuja letra menciona a boa brisa que ganhou renovado sentido em 2023.

Mônica Salmaso e Chico Buarque reiteram a afinidade musical e ideológica na estreia carioca do show 'Que tal um samba?' — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

Mônica Salmaso e Chico Buarque reiteram a afinidade musical e ideológica na estreia carioca do show 'Que tal um samba?' — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

Convidada de Chico, Salmaso se fez presente ao longo do show – entre entradas e saídas do palco feitas com naturalidade – e conquistou o público pelo mix preciso de técnica e emoção ao dar voz a músicas como Passaredo (1977), Mar e lua (1980) e Beatriz (1983).

Descendente da linhagem nobre de Nana Caymmi (não por acaso, Salmaso lançou ano passado um disco em duo com Dori Caymmi), a monumental cantora paulistana abriu o show com Todos juntos (1977) – manifesto de resistência fraterna da trilha sonora do musical Os saltimbancos (1977) – e mostrou desde o primeiro dos cinco solos do set inicial que, sim, tem cacife para ocupar lugar que poderia ser de Gal Costa ou Maria Bethânia.

Uma e outra foram evocadas de forma sagaz e silenciosa nos contracantos de Chico e Salmaso no samba Biscate (1993) e na canção Sem fantasia (1968), músicas gravadas pelo cantor com Gal e Bethânia, respectivamente. Só que, como os tempos são outros, Chico e Salmaso subvertem questões de gênero ao fim de Biscate, com ela assumindo na letra a parte que era dele e vice-versa.

Emoldurado por projeções de fotos que expressam belezas e lutas do Brasil no cenário de Daniela Thomas, Chico Buarque entrou em cena somente ao fim da sexta música, Paratodos (1993), cuja última estrofe foi cantada com Salmaso.

A partir de Paratodos, o velho e garboso Francisco desfiou canções que puxaram o fio da memória de um Brasil sempre dissonante em fraturas sociais expostas em músicas como O meu guri (1981), Assentamento (1997), Sinhá (2011) e As caravanas (2017), esta contundentemente turbinada com citação de Deus lhe pague (1971).

Chico Buarque toca violão na estreia do show 'Que tal um samba?' na cidade do Rio de Janeiro (RJ) — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

Chico Buarque toca violão na estreia do show 'Que tal um samba?' na cidade do Rio de Janeiro (RJ) — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

No palco, tudo soou harmonioso no toque da banda regida pelo diretor musical Luiz Cláudio Ramos (violão) e formada por Bia Paes Leme (teclados e vocais), Chico Batera (percussão), João Rebouças (piano e cavaquinho), Jorge Helder (baixo e bandolim), Jurim Moreira (bateria) e Marcelo Bernardes (saxofone, flauta e clarinete), além do próprio Chico ao violão, tocado na maior parte do tempo em que permaneceu no palco, sentado, dando voz a belezas atemporais do quilate da canção Futuros amantes (1993) e revolvendo uma ou outra canção menos badalada, caso de As minhas meninas (1987).

Além de Desalento, o roteiro perdeu as recentes Nina (2011) e Blues pra Bia (2017), e também Sabiá (1968), mas ganhou Bastidores (1980) e a já mencionada Mil perdões (1983). Mudanças que agregarão valor ao já planejado – mas ainda não anunciado – registro audiovisual do show Que tal um samba?.

No palco da casa Vivo Rio, o tom foi de celebração. Em essência, Chico Buarque abençoou a boa brisa soprada no Brasil ao som de sambas redentores. O samba da terra que é também o país do Carnaval, festejado no dueto com Mônica Salmaso em Noite dos mascarados (1967) no bis iniciado com tributo terno à irmã Miúcha (1937 – 2018) em Maninha (1977) e encerrado com o faz-de-conta lúdico da valsa João e Maria (1977).

Herói que enfrentou os batalhões do obscurantismo no tempo da maldade, Chico Buarque foi rei na estreia carioca do show Que tal um samba?, entronizado por gente agora já sem medo de ser feliz.

Chico Buarque toca violão à frente do cenário de Daniela Thomas na estreia carioca do show 'Que tal um samba?'  — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

Chico Buarque toca violão à frente do cenário de Daniela Thomas na estreia carioca do show 'Que tal um samba?' — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

♪ Eis as 34 músicas alocadas nos 31 números do roteiro seguido por Chico Buarque e Mônica Salmaso em 5 de janeiro de 2023 na estreia carioca do show Que tal um samba? na casa Vivo Rio, na cidade natal do Rio de Janeiro (RJ):

1. Todos juntos (Luís Enríquez Bacalov e Sergio Bardotti em versão de Chico Buarque, 1977) – Mônica Salmaso

2. Mar e lua (Chico Buarque, 1980) – Mônica Salmaso

3. Passaredo (Francis Hime e Chico Buarque, 1977) – Mônica Salmaso

4. Bom tempo (Chico Buarque, 1968) – Mônica Salmaso

5. Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque, 1983) – Mônica Salmaso

6. Paratodos (Chico Buarque, 1993) – Mônica Salmaso com Chico Buarque na última estrofe

7. O velho Francisco (Chico Buarque, 1987) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

8. Sinhá (João Bosco e Chico Buarque, 2011) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

9. Sem fantasia (Chico Buarque, 1968) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

10. Biscate (Chico Buarque, 1993) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

11. Imagina (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1983) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

12. Choro bandido (Edu Lobo e Chico Buarque, 1985) – Chico Buarque

13. Sob medida (Chico Buarque, 1979) – Chico Buarque

14. Bastidores (Chico Buarque, 1980) – Chico Buarque

15. Mil perdões (Chico Buarque, 1983) – Chico Buarque

16. Samba do grande amor (Chico Buarque, 1983) – Chico Buarque

17. Injuriado (Chico Buarque, 1998) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

18. Tipo um baião (Chico Buarque, 2011) – Chico Buarque

19. As minhas meninas (Chico Buarque, 1987) – Chico Buarque

20. Uma canção desnaturada (Chico Buarque, 1978) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

21. Morro Dois Irmãos (Chico Buarque, 1989) – Chico Buarque

22. Futuros amantes (Chico Buarque, 1993) – Chico Buarque

23. Assentamento (Chico Buarque, 1997) – Chico Buarque

24. Bancarrota blues (Edu Lobo e Chico Buarque, 1985) – Chico Buarque

25. Tua cantiga (Cristovão Bastos e Chico Buarque, 2017) – Chico Buarque

26. O meu guri (Chico Buarque, 1981) – Chico Buarque

27. As caravanas (Chico Buarque, 2017) com citação de Deus lhe pague (Chico Buarque, 1971) – Chico Buarque

28. Que tal um samba? (Chico Buarque, 2022) /

Samba da benção (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1966)

Samba da minha terra (Dorival Caymmi, 1940) /– Chico Buarque e Mônica Salmaso

Bis:

29. Maninha (Chico Buarque, 1977) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

30. Noite dos mascarados (Chico Buarque, 1967) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

31. João e Maria (Sivuca e Chico Buarque, 1977) – Chico Buarque e Mônica Salmaso

Mônica Salmaso arrebata o público na estreia carioca de 'Que tal um samba?' desde o set solo no início do show — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

Mônica Salmaso arrebata o público na estreia carioca de 'Que tal um samba?' desde o set solo no início do show — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

 

Fonte: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2023/01/06/chico-buarque-esquece-o-desalento-e-abencoa-a-boa-brisa-do-brasil-na-estreia-do-show-que-tal-um-samba-no-rio-de-janeiro.ghtml